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14/05/2020

O que impede a resolução dos Crimes de Maio?

Em 14 anos autoridades públicas foram incapazes de esclarecer as centenas de execuções praticadas por grupos de extermínio em periferias de São Paulo

Dona Débora, leader of the Mothers of May Movement, in an interview with Conectas
on the Crimes of May. (Photo: João Paulo Brito/Conectas) Dona Débora, leader of the Mothers of May Movement, in an interview with Conectas on the Crimes of May. (Photo: João Paulo Brito/Conectas)

Há 14 anos, em meio a comemoração do dia das mães, as periferias de São Paulo tornaram-se palco de uma onda de terror e violência sem precedentes. Mais de 500 pessoas, na maioria jovens e negros, foram executados entre 12 e 21 de maio de 2006, no episódio que ficou conhecido como Crimes de Maio. A maior parte das vítimas foi morta à queima roupa por grupos de extermínios – homens encapuzados, fortemente armados e em veículos sem placa.

Descaso, falhas e negligência nas investigações conduzidas pelas polícias Civil e Militar, somadas à omissão do Ministério Público de São Paulo, órgão responsável pelo controle externo das forças de segurança pública do estado, levaram ao arquivamento e à impunidade de quase todos os crimes.

Familiares das vítimas, que por mais de uma década convivem com a ausência de seus parentes assassinados, lutam por respostas sobre as circunstâncias das mortes e pela reabertura dos inquéritos. Muitas das mães que perderam seus filhos morreram após sofrer longos períodos de depressão e tristeza.

As investigações sobre as mortes nunca foram concluídas e, em 2009, a Conectas pediu à PGR (Procuradoria-Geral da República) a federalização de um dos casos mais emblemáticos dos Crimes de Maio: a chacina do Parque Bristol. A transferência para a esfera federal permitirá que as investigações sejam reabertas e realizadas por peritos independentes do Ministério Público Federal e pela Polícia Federal.

Somente em maio de 2016, dez anos após os assassinatos, o então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, acatou a solicitação e apresentou ao Superior Tribunal de Justiça o pedido de federalização. Passaram-se quatro anos e a Corte ainda não levou o caso a julgamento.

Nos anos de 2009 e 2016, a Conectas e os familiares das vítimas denunciaram o caso à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos) alegando a violação, por parte do Estado Brasileiro, da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo país em 1992.

Os Crimes de Maio devem, mais uma vez, ser alvo de debate em uma nova audiência no próximo período de sessões da Comissão Interamericana, em junho deste ano. O governo brasileiro deverá responder por que é incapaz de dar respostas sobre as autorias dos crimes.

Infográfico sobre a linha do tempo do processo de investigação dos Crimes de Maio de 2006.

Descaso e omissões

Um dos principais estudos publicados sobre os Crimes de Maio, “São Paulo sob Achaque (2011)”, realizado pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard e pela Justiça Global, constatou que o DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa) esclareceu total ou parcialmente 85,7% (12 de 14 casos) dos casos envolvendo ataques contra agentes públicos que ocorreram entre 12 e 21 de maio de 2006. No entanto, apenas 12,9% (4 de 31) dos crimes envolvendo civis em que pesava suspeita da ação de grupos de extermínio foram devidamente investigados.

Entre as centenas de assassinatos ocorridas naquele período, apenas em dois casos houve condenação de policiais militares, sendo que um deles se entregou espontaneamente. 

Diversas informações levantadas no decorrer dos anos apontam que procedimentos básicos deixaram de ser adotados no curso das investigações, como ouvir testemunhas presenciais citadas nas ocorrências e relacionar a ligação de assassinatos. 

Além disso, de acordo com relatos, policiais militares, em diferentes casos, não preservaram as cenas dos crimes, fator primordial para possibilitar uma perícia adequada. Diversas testemunhas ainda relataram que, antes da chegada dos peritos, as cápsulas deixadas nas ruas eram recolhidas pelos próprios PMs, para eliminá-las. 

Nova pesquisa, realizada pelo CAAF/Unifesp (Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo), intitulada “Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006”, traz uma análise sobre os laudos cadavéricos de pessoas mortas por arma de fogo entre 12 e 21 de maio de 2006. O diagnóstico partiu  da Comissão Especial da Crise de Segurança Pública do Estado de São Paulo, criada para investigar os crimes, e mostrou que a maioria dos disparos foi feita a curta distância, em regiões vitais do corpo – como tronco e cabeça, e com uma predominância de direção de cima para baixo.

Essas características, comprovadas a partir do exame de 124 laudos, apresentam fortes indícios de execução. Segundo o relatório da Comissão, em situações de confronto haveria uma dispersão maior dos orifícios de entrada de tiros, com registros também em membros superiores e inferiores. 

A maior parte dos casos, no entanto, foram registrados como “resistência seguida de morte”, nomenclatura utilizada por agentes públicos para descrever mortes de suspeitos que entraram em confronto com a polícia. 

As famílias e estudos independentes mostram que houve uma tentativa sistemática de criminalizar inocentes durante aqueles dez dias.

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